Divã 2
Deus
— Doutora, eu estou chegando à conclusão que Deus não existe.
— Já não era sem tempo, né minha filha?
Uma pausa confusa me acomete.
— Não sabia que você era ateia.
— Digamos que eu acredite em Deus quando me convém. Eu não confio muito em quem cria uma manga e dá vida a uma pessoa como Bolsonaro.
Ela tem um ponto. Um ponto muito importante.
— E qual é o efeito que você acha que essa percepção terá na sua vida?
— Ah, muda muita coisa, né… Por exemplo: se acontece alguma coisa, tipo, cai um dinheiro inesperado na minha conta, ou um cara que eu tô muito a fim olha meus stories, ou quem sabe até uma pessoa muito má morre, eu não vou mais dizer "graças a Deus", por exemplo.
— Entendi. E se essas coisas boas acontecem sem a existência de Deus, especialmente a morte do bolsonarista, a quem você vai ser grata agora?
— Talvez seja o caso de não agradecer a mais ninguém, né?
Seu semblante muda em questão de segundos. Ela anota no seu caderno.
— Doutora?
Ela continua anotando, mas agora parece que ela mais rabisca com força do que anota. Volta a mim repentinamente.
— Entendi. Você acha que ninguém mais merece seu agradecimento. Você acha que consegue tudo sozinha. Você acha que você chegou a essa BRILHANTE conclusão sem a ajuda de NIN-GUÉM.
Não entendo o tom magoado dela.
— Não, é claro que/
— Quer dizer que, na falta de Deus, não lhe ocorre mais NINGUÉM na sua vida pra agradecer? Nenhuma pessoa que te acolhe quando você está com pensamentos suicidas, ou que ouve milhares de vezes sobre esses seus relacionamentos tóxicos, ou que para TUDO o que está fazendo, inclusive um menáge maravilho, para atender a sua ligação?
— Doutora, você disse que estava correndo.
— Eu acho que a gente termina por hoje.
Ela me encaminha até a porta.
— Tá bom. Obrigada.
Como que num assalto, ela segura no meu braço com força e me puxa pra dentro da sala de novo.
— Doeu dizer "obrigada"?
Feliz, a terapeuta diz pra si mesma, em voz não tão baixa.
— Obrigada Deus, por me proporcionar mais um mês da minha TV a cabo. Te devo mais uma.